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quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Intercomunitarismo africano


Os ideais anarquistas levam logicamente ao internacionalismo ou mais precisamente ao transnacionalismo, que significa para além do Estado-nação. Os anarquistas preveem um momento em que o Estado-nação deixará de ter qualquer valor positivo para a maioria das pessoas, e vai de fato ser jogado no lixo. Mas esse tempo ainda não chegou e, até que seja, devemos organizar para o intercomunitarismo, ou relações mundiais entre povos africanos e seus movimentos sociais revolucionários, em vez de seus governos e chefes de Estado.

O Partido dos Panteras Negras apresentou pela primeira vez o conceito de intercomunitarismo na década de 1960 e, embora ligeiramente diferente, é muito mais um conceito libertário em sua essência. (Isto costumava ser chamado de "Panafricanismo", mas incluía essencialmente os governos "revolucionários" e movimentos coloniais ou de independência como aliados). Devido ao legado da escravidão e neocolonialismo econômico contínuo, que dispersou os negros para todos os continentes, é possível falar de solidariedade revolucionária negra internacional.

É assim que os anarquistas veem o mundo: o mundo está actualmente organizado em estados-nação concorrentes. Embora as nações capitalistas ocidentais tenham sido responsáveis ​​pela maior parte da fome do mundo, pelo imperialismo e pela exploração dos povos não-brancos da terra, na verdade, todos os Estados são instrumentos de opressão. Mesmo que haja governos que afirmam ser "Estados operários", "países socialistas" ou "governos revolucionários", em essência, todos eles têm a mesma função: a ditadura e a opressão dos poucos sobre muitos. A falência do Estado é ainda mais comprovada quando se olha para os milhões de mortos das duas guerras mundiais, provocadas pelo imperialismo europeu, (1914-1918 e 1939-1945), e centenas de guerras incitadas pelas grandes potências do Ocidente ou a Rússia na década de 1950 e continuando até hoje. Isso inclui "Estados operários", como China-Rússia, Vietnã-China, Vietnã-Camboja, Somália-Etiópia, Rússia-Tchecoslováquia, e outros que têm ido à guerra por disputas fronteiriças, intriga política, invasão ou qualquer outra ação hostil. Enquanto houver Estados-nações, haverá guerra, tensão e inimizade nacional.

Na verdade, a parte triste sobre a descolonização da África na década de 1960 foi que os países se organizaram pelo ideal eurocêntrico do Estado-nação, em vez de algum outro tipo de formação mais aplicável para o continente, como uma federação continental. Isso, é claro, foi um reflexo do fato de que, embora os africanos tivesse obtido independência formal e todas as armadilhas do Estado europeu soberano, não permitiram que eles obtivessem a liberdade. Os europeus ainda controlavam as economias do continente Africano, e os líderes nacionalistas que surgiram foram, na sua maioria, o mais maleáveis e conservadores possível. Os países da África eram como um cão com uma coleira no pescoço; embora os europeus não pudessem mais governar o continente com domínio colonial direto, agora o faziam através de fantoches que controlavam e defendian, como Mobutu no Congo, Selassié na Etiópia, e Kenyatta no Quênia. Muitos desses homens eram ditadores da pior espécie e seus regimes existiam estritamente por causa do capital financeiro europeu. Além disso, havia comunidades de brancos colonizadores nas colónias portuguesas, África do Sul e Zimbabwe, que oprimiam os povos africanos ainda mais do que o antigo sistema colonial. É por isso que os movimentos de libertação nacional surgiram nos anos 1960 e 70.

Os anarquistas apoiam os movimentos de libertação nacional, na medida em que eles lutam contra uma potência colonial ou imperialista; mas também notam que, em quase todos os casos em que essas frentes de libertação assumiram o poder do Estado, se tornaram partidos "comunistas de Estado" e novos ditadores sobre as massas do povo. É o caso mesmo que se envolveram nas lutas mais épicas, mas incluem também muitos baseados desde o começo na mais óbvia ditadura militar. Eles não são progressivos e não toleram nenhuma dissidência. Por exemplo, assim que o governo do MPLA chegou ao poder em Angola, começou a prender todos os seus adversários ideológicos de esquerda (maoístas, trotskistas, anarquistas e outros) e reprimir à força as greves de trabalhadores por melhores salários e condições de trabalho, chamando essas ações de "chantagem" e "sabotagem econômica". E com o caso Nito Alves e sua suposta tentativa de golpe (Alves era um herói da revolução e um líder militar popular), houve o primeiro expurgo no partido do novo governo. Algo semelhante a isto também ocorreu quando o movimento sandinista de Libertação Nacional assumiu na Nicarágua na década de 1980. Nada disso deve parecer estranho ou incaracterístico para anarquistas, quando consideramos que o partido bolchevique fez a mesma coisa quando se consolidou o poder do Estado durante a Revolução Russa (1917-1921).

Países como o Benin, Etiópia, República Popular do Congo e outros governos "revolucionários" na África não estão no poder como resultado de uma revolução social popular, mas sim por causa de um golpe militar ou terem sido instalados lá por uma das principais potências mundiais. Mais ainda: muitos dos movimentos de libertação nacional não eram movimentos sociais independentes, e sim estavam sob a influência ou o controle da Rússia ou China, como parte de sua luta geopolítica contra o imperialismo ocidental e uns contra os outros. Isso não quer dizer que os movimentos revolucionários não devam aceitar armas e outros tipos de apoio material de potências estrangeiras, desde que  permaneçam independentes politicamente e determinem as suas próprias políticas, sem esse auxílio estar subordinado aos ditames políticos e da "linha do partido" de outro país.

Mas mesmo que nós tenhamos diferenças com eles, politica e taticamente em muitas áreas, e mesmo com todas as suas falhas depois de assumir o poder do Estado, os combatentes da libertação revolucionários são nossos camaradas e aliados na luta comum contra o inimigo comum - a classe dirigente imperialista dos EUA, enquanto a luta continua. Sua luta afrouxa o aperto da morte dos EUA e do imperialismo ocidental (ou como anarquistas mais precisamente os chamam, do poder mundial capitalista) e, enquanto a luta continua, estamos ligados pela camaradagem e solidariedade. No entanto, mesmo assim não podemos ignorar as atrocidades cometidas por movimentos como o Khmer Rouge, um movimento guerrilheiro marxista-leninista no Camboja, que simplesmente massacrou milhões de pessoas para levar a cabo políticas stalinistas rígidas e se consolidar no país. Temos de colocar esta carnificina e outros crimes cometidos pelo comunismo de Estado a nu para todos verem. Nós não apoiamos esse tipo de revolução, que está apenas em busca do poder absoluto e de terrorismo contra o povo. É por isso que o anarquismo sempre discordou da forma como os bolcheviques tomaram o poder na Rússia Soviética; e carnificina do povo russo por Stálin parece ter definido um modelo para os movimentos comunistas Estado seguirem ao longo dos anos.

As frentes de libertação nacional cometem um erro básico de muitos movimentos nacionalistas de povos oprimidos, e que é se organizarem de uma forma em que as distinções de classe são obliteradas. Isso aconteceu na América, onde na luta pelos direitos democráticos, o movimento dos direitos civis incluía negros de classe média, pregadores, professores e outros, e cada pessoa negra era um "irmão" ou "irmã", desde que fossem negros. Mas esta análise simplista da realidade social não se sustentou por muito tempo, porque quando a fase dos direitos civis da luta dos negros americanos passou, as distinções de classe e a luta de classes vieram à tona. Elas se acentuaram cada vez mais desde então. Embora existam prefeitos negros e outros burocratas, eles servem apenas como agentes de pacificação do Estado: "rostos negros em lugares altos". Este sistema neocolonial é semelhante ao tipo de neocolonialismo que teve lugar no Terceiro Mundo, depois de muitos países terem alcançado a "independência" na década de 1960. A Europa ainda manteve o controle, por meio de políticos marionetes e um comando pequeno-burguês, que estava disposto a trocar a liberdade do povo por ganhos pessoais. Essas pessoas simplesmente presidem sobre a miséria das massas. Eles não são uma concessão grave para a nossa luta. Eles são colocados no cargo para cooptar a luta e amortecer a dor das pessoas.

Assim, quando os revolucionários negros apoiam em geral as ideias do intercomunitarismo africano, eles querem unidade revolucionária de princípios. Claro, o maior serviço que podemos prestar aos povos do chamado "Terceiro Mundo", da África, Ásia e América Latina, é fazer uma revolução aqui na América do Norte - no ventre da besta. Libertando a nós mesmos, tiramos a classe dominante imperialista dos EUA das nossas costas. Queremos construir uma organização negra internacional contra o capitalismo, o racismo, o colonialismo, o imperialismo e a ditadura militar, que poderia lutar de forma mais eficaz contra as potências capitalistas e criar uma federação mundial dos povos negros. Queremos unir um irmão ou irmã na América do Norte com os povos negros da Austrália e da Oceania, África, Caribe e América do Sul, Ásia, Oriente Médio, e os milhões do nosso povo que vivem na Grã-Bretanha e outros países da Europa Ocidental. Queremos unir as tribos, nações e culturas negras em um organismo internacional de bases e forças que lutam.

Em todo o mundo, os povos negros estão sendo oprimidos pelos seus governos nacionais. Alguns são súditos coloniais de países europeus, e um ou outro dos Estados africanos explora alguns. Só uma revolução social vai levar os negros à unidade e à liberdade. No entanto, isto só será possível quando existir uma organização revolucionária internacional e um movimento social negros. Uma organização que possa coordenar a lutas de resistência em todos os lugares dos povos africanos; na verdade, uma rede de organizações, movimentos de resistência, que estão espalhados por todo o mundo com base em um consenso para a luta revolucionária. Este conceito aceita qualquer nível de violência que possa ser necessário para fazer cumprir as demandas do povo e dos trabalhadores. Nos países em que um movimento revolucionário negro aberto seria submetido a feroz repressão por parte do Estado, como na África do Sul e mesmo nas ditaduras fantoche negras em outras partes da África, Caribe e Ásia, seria necessário empreender uma luta clandestina de resistência. Além disso, o Estado tem se tornado cada vez mais violento, com tortura generalizada e execuções, prisões e controles policiais máximos, espionagem e privação de direitos democráticos, brutalidade policial e assassinato. Claramente esses governos -e todos os governos- devem ser derrubados. Eles não vão cair devido a problemas econômicos ou políticos internos, e sim devem ser derrotados e desmantelados. Então, nós chamamos para um movimento de resistência internacional para derrubar os governos e o sistema de governo do mundo capitalista.

Mas, mesmo nos países imperialistas ocidentais, devemos reconhecer a legitimidade da violência revolucionária. Quando forem necessárias tais formas de ação revolucionária, no entanto, uma clara diferença deve ser vista entre os revolucionários, entre o terrorismo simples sem apoio popular e programa político coerente, e a guerra de guerrilhas decorrente das frustrações sentidas coletivamente pelas pessoas comuns e os trabalhadores. A utilização de métodos militares seria necessária num caso em que a violência do estado tornasse imperativo para os revolucionários negros se defenderem, tomando a ofensiva armada contra o Estado e a classe dominante, e para expropriar a riqueza da classe capitalista durante a revolução social.

O movimento de libertação negro necessita de uma organização capaz de coordenação internacional da luta de libertação negra, uma federação mundial dos povos africanos. Esta não seria apenas um movimento anarquista: uma federação como esta seria mais eficaz do que qualquer grupo de Estados, as Nações Unidas ou a Organização de Unidade Africana, em libertar as massas negras. Ela envolveria as próprias massas populares, e não apenas os líderes nacionais ou Estados-nação. Os ditadores militares e burocratas do governo somente provaram que sabem como gastar dinheiro com pompa e circunstância, mas não como desmantelar os últimos vestígios do colonialismo na África do Sul ou derrotar intrigas neocolonialistas ocidentais. A África ainda é o mais pobre dos continentes do Mundo, mesmo sendo o mais rico materialmente. O contraste é claro: milhões de pessoas estão morrendo de fome em grande parte da África Equatorial, mas os chefes tribais, políticos e ditadores militares, estão dirigindo Mercedes e vivendo em moradias de luxo, enquanto pedem empréstimos a banqueiros europeus ocidentais e americanos através do Fundo Monetário Internacional. Eles são parte do problema, não parte da solução!

Nossas ideias sobre a importância do intercomunitarismo estão baseadas em uma firme convicção de que só uma federação de povos livres trará o verdadeiro poder negro para as massas. "Poder para o povo" não significa um governo ou partido para governar em seu nome, e sim o poder social e político nas mãos do próprio povo. O único "poder popular" real é o poder de tomar as suas decisões sobre assuntos importantes, e não simplesmente eleger alguém para fazê-lo, ou ter uma ditadura forçada pra dentro da sua garganta. A verdadeira liberdade é ter autodeterminação completa sobre o desenvolvimento econômico e sociocultural de cada um. O futuro é o comunismo anarquista, e não o Estado-nação, ditadores sanguinários, o capitalismo ou a escravidão assalariada.

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